É um dos rostos da comunidade portuguesa em Paris, que diz não funcionar como comunidade. Mas quanto a isso, já lá vamos. São vários os projetos que liderou, várias as ideias que desenvolveu, vários os temas que leva a discussão. Chama-se Hermano Sanches Ruivo e foi o primeiro português a ser eleito para a Câmara de Paris, em 2008.
Quais são as suas raízes e como foi a chegada a França?
Nasci em Alcains, uma freguesia de Castelo Branco, a 23 de maio de 1966. A minha mãe era mais de Proença-a-Nova e o meu pai é que era de Alcains. Vim para França tinha cinco anos, tendo chegando à Gare de Austerlitz, onde em breve vai ser colocada uma placa a prestar homenagem à comunidade portuguesa, porque de facto foram dezenas de milhares, para não dizer centenas de milhares de pessoas que chegaram de comboio. Tive a sorte, entre aspas, de chegar a França com apenas cinco anos, em 1971. O meu pai já estava em França desde 1970, vim com a minha mãe e o meu irmão Carlos. Eu digo que foi a nossa sorte de sermos crianças, porque assim conseguimos entrar dentro do tecido francês, da escola francesa, o que não aconteceu com todos e, muitas vezes, a diferença fazia-se por dois, três anos.
Sempre soube o que queria para o seu percurso profissional?
Com 58 anos agora, tenho o sentimento que uma parte da minha vida não fui bem eu que escolhi. A emigração não é uma viagem de turismo. Vivia uma realidade num liceu onde existia uma diferenciação social entre os mais ricos e os mais pobres. Não havia racismo da mesma forma, havia uma espécie de conotação … da malta que era da Dinamarca, da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Alemanha. Depois éramos nós, os italianos, os espanhóis, os portugueses. Conseguíamos fazer a diferença na bola (risos).
Óbvio que, desde o início, tinha interesse por Relações Internacionais e Direito, por essa noção de fazer a ligação com outras nacionalidades. Foi por isso que, depois do liceu, fui para Direito, mas com uma especialização em Direito Internacional. Depois comecei a participar em eventos e aí apareceram duas coisas: a tropa francesa e a tropa portuguesa. Com as duas nacionalidades acabava por ser obrigatório fazer as duas. E foram momentos um bocado difíceis. Eu tenho agora a faixa francesa e tenho essa pasta dos antigos combatentes no meu bairro, mas lembro-me quando, pela primeira vez, estava de sentinela à frente da bandeira francesa, com todos os outros nesses primeiros dias de tropa francesa, foi difícil. Na minha cabeça cantava o hino nacional português, porque era estranho estar a ter de fazer uma tropa em França, tendo uma ligação a Portugal tão forte. Mas depois desapareceu.
Depois disso apareceram muitos projetos internacionais. Lisboa foi Capital da Cultura em 1994 e a Cap Magellan foi criada em novembro de 1991. Essa associação surge para percebermos como é que nós podemos inteligentemente utilizar a dupla cultura. Por isso se chama Cap Magellan e não associação dos jovens lusodescendentes da região de Paris. A ideia era ter dinamismo, não apenas na parte cultural, mas na utilização máxima da língua portuguesa e da rede portuguesa.
Numa altura em que Portugal já tinha entrado na União Europeia, estava em franco desenvolvimento, víamos como é que as empresas francesas estavam de tal maneira a começar a instalar-se em Portugal. Essas duas situações – os projetos internacionais e a criação de uma estrutura que era muito para fazer algo concreto – marcaram o meu percurso. A primeira ação Cap Magellan é um fórum de emprego e de investimento aqui em Paris. Era uma coisa que saía um bocado do vulgar.
Lisboa 94, Expo 98 e Porto 2001, essas três datas firmaram muito a minha ligação à parte portuguesa. É verdade também que o projeto associativo desenvolveu bastante. Éramos loucos, organizávamos grandes concertos, desde GNR, Resistência, Delfins, Abrunhosa, Santos e Pecadores, Madredeus. Tínhamos trabalho todos os dias, era um bocado essa a realidade e toda a problemática de acompanhar o desenvolvimento. Foi assim que também entramos na coordenação das associações. Presidi um pouco mais tarde, com essa ideia de desenvolver uma rede.
E os objetivos podiam ser os mais variados. Um deles seria a língua portuguesa, que está de rastos. Depois, quantos portugueses receberam a Legion d´honneur nestes últimos 50 anos? Provavelmente cinco.
A verdade é que depois acaba por vir parar à política, com a entrada no Conselho de Paris, em 2008.
Além de ser independente e ser consultor, a minha vida claramente mudou em 2007, com o Bertrand Delanoë, que era naquela altura o presidente da Câmara de Paris, que tinha ganho em 2001 esta câmara para os socialistas e para a esquerda. Tínhamos trabalhado juntos sobre os assuntos europeus e tinha participado na organização de um evento que tinha a ver justamente com jovens. Ele compreendeu qual era a minha experiência e também os meus objetivos nessa ideia de tornar a Europa muito mais concreta. Convidou-me a entrar para as listas, em que dez de cada bairro são eleitos e vêm para esta sala, pois é aqui que realmente que está o poder. Fez entrar o primeiro português, ou melhor, o primeiro francês de origem portuguesa na câmara principal, o Conselho de Paris. Esta é a minha história. Quando se entra numa câmara como a de Paris e, sobretudo, num espaço como este, já não há muito espaço para fazer outro tipo de trabalhos e, portanto, a minha vida desde 2008 foi muito firmada sobre isso, e depois desenvolvi alguns projetos ligados a associações. Fui vice-presidente da Comissão das Relações Internacionais no primeiro mandato e depois conselheiro, até vereador executivo.
Fiz a proposta de criar o Conselho Parisiense dos Europeus, ou seja, temos as 28 nacionalidades, porque fiz permanecer os nossos amigos britânicos para estarem aqui também, e reúnem-se nesta sala, para fazerem propostas. Como é que nós podemos viver mais a Europa? Como é que nós podemos resolver problemas que tem a ver com cada uma das nacionalidades? Situações de código civil, coisas de instalação e o ensino das línguas, por exemplo. Portanto, foi isso que acabou por fazer com que eu estivesse essencialmente ligado ao projeto da câmara para os assuntos europeus.
Foi o primeiro português a ser eleito aqui para a Câmara de Paris. Qual é o sentimento que se fica?
França não gosta da quinta coluna. Eu lamento a utilização da palavra luso-eleito. Nós não somos luso-eleitos, nós somos eleitos franceses de origem portuguesa. Podemos ter a nacionalidade portuguesa, mas nós não somos uma quinta coluna.
Confesso que fiquei e tenho algum orgulho, mas responsabilidade também. Mas é sobretudo uma batalha depois para a comunidade portuguesa, porque não deve ser esquecida. Alguns são eleitos e depois esquecem essa ligação, se calhar por medo justamente de estarem a pisar o risco amarelo. De facto, é a realidade que eu tenho. Eu estou constantemente a pisar o risco amarelo, porque a definição da realidade europeia não está escrita, tem de ser vivida. A parte portuguesa sempre teve presente. De resto, já levei e vou continuar a levar com a régua sobre os dedos, porque acaba por ser a injustiça deste trabalho. É cada vez mais difícil ser eleito autárquico, porque estamos muito próximos da população. Um deputado está na assembleia. Nós aqui estamos na primeira linha no contacto com os habitantes.
Temos diretores de teatros ou de estabelecimentos autárquicos que são pessoas de origem portuguesa, e isso não acontece sozinho. Não é apenas focar nos portugueses, mas é dizer que eles também podem vir a participar. Mas, para isso, é preciso que haja uma espécie de tomada de consciência.
O Bertrand Delanoë e a Anne Hidalgo compreenderam que a minha ligação à comunidade portuguesa não era fictícia, era real, e que não vinha aqui apenas trabalhar para a comunidade portuguesa, mas sim para todos os parisienses. No fundo estou a defender os interesses Paris.
É um dos fundadores da Cap Magellan. É um projeto especial para si?
Sim, criamos em 1991 e é um projeto especial. É oxigénio puro. Eu acho que uma das motivações era ter a certeza de que nós é que tínhamos o micro. Ou seja, não estarmos dependente das embaixadas, dos ministérios, dos presidentes de câmara, queríamos ter a nossa própria capacidade em segurar o micro e dizer o que nós achávamos ser importante. Mas, para isso, era preciso organizar os eventos. Quando se tem cinco mil pessoas no Zenith Paris para um concerto, por exemplo, de Resistência e Delfins ou Pedro Abrunhosa, antes das atuações havia alguém que segurava o micro e dizia: ‘estamos aqui cinco mil, nós somos portugueses e lusodescendentes, temos uma ligação, por favor aprendam a língua portuguesa ou, por favor, mantenha uma ligação com Portugal’.
O fórum da Cap Magellan, durante anos, foi o principal ponto de encontro, na altura em que era necessário. Em cinco ou dez mil metros quadrados, 40 stands, três dias de colóquios, de showcases, onde vinham artistas. Era uma maneira de mostrar quais eram as necessidades, e quem eram os atores. Tudo isso era organizado por uma associação de ‘putos’. Tínhamos 25 anos, éramos uma espécie de extraterrestres nessa realidade, fazendo a ligação com as outras associações. Muitas vezes as associações já eram importantes e tinham jovens, mas não deixavam desenvolver um núcleo mais importante. Portanto, esse projeto foi super importante.
A Cap Magellan é super importante, como uma câmara de comércio ou outras associações quando realmente trabalham. São barómetros da evolução de uma comunidade. Uma comunidade com 50 anos tem de ter associações de jovens muito fortes. A Cap Magellan já tem mais de 30 anos de experiência e, sobretudo, parte pedra. A ideia é dizer ‘Portugal é solução’, mas com coisas muito concretas. Portanto, sempre foi importante e continua a ser importante, mesmo não estando na administração. Agora continuo a seguir.
Que ligação ainda mantém?
Tenho missões. Sou eu quem trata das campanhas, por exemplo, da segurança rodoviária ou da promoção do ensino superior. Por várias razões. Primeiro porque a própria estrutura da associação continua a ser de um elevado número de jovens espalhados por todo o território francês. Depois vem a parte da negociação.
Uma das muitas das experiências que eu vivi antes de 2008, na altura das negociações, era sempre: se o senhor sair, ou se essa equipa sair, como é que a associação se vai desenvolver? Ou seja, a confiança que era dada aos jovens, que não são o futuro, são o presente, foi sempre uma das grandes dificuldades e, portanto, os antigos ainda mantêm uma ligação pro-bono ou por comissões. Mas a verdade é que essa ligação à parte da Cap Magellan continua a ser importante e indispensável. Porquê? Porque nós já não estamos apenas a tratar da segunda geração, estamos agora a tratar da terceira geração. Eu tenho dois filhos de 21 anos, que são a terceira geração. Um deles está a estudar em Lisboa, o outro está a estudar engenharia aqui. Mas há uma preocupação que é sempre a mesma. Como é que eles podem viver plenamente a dupla cultura? Não são muitas as estruturas, e isso eu posso lamentar, que faz com que essa presença cultural portuguesa não seja mais consequente. Se não fossem as associações, qual seria a programação cultural no território francês? Claro que o Instituto Camões também tem algum trabalho. Mas se não fosse a Casa de Portugal e pessoas como o João e a Ana e toda a capacidade deles, o que seria? Eu estou muitas vezes com o sentimento de estar a preencher buracos, porque não há comunidade portuguesa estruturada e não há visão. Muitas vezes há uma falta de ambição de Portugal, na ligação com as suas comunidades, nessa ideia de lobbying. Se as 500 câmaras onde há uma comunidade portuguesa forte a viver tivessem sistematicamente uma programação à volta de Portugal, nós não teríamos muito mais presença? Nós não teríamos muito mais ensino? Teríamos mais procura pela língua portuguesa? Sim. Eu questiono-me junto de todos os governos, porque nenhum partido político português pode dizer que já fez suficientemente para isso. Isso tem de ser uma visão super apartidária. Qual é a visão que Portugal tem na utilização das suas comunidades fora, em países de mercados maduros e com poder? Estados Unidos, Canadá, Brasil, África do Sul, Austrália, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Reino Unido, Bélgica, Suíça, França, e faltam alguns …
Qual seria a solução para passarmos a uma comunidade que trabalha em rede?
É uma questão de pessoas. Foi sempre difícil sentar à volta da mesa essas pessoas. Quem não sabia fazer não, não deixava fazer. Lembro-me do embaixador António Monteiro ter convencido as duas associações de empresários a se juntarem e de criarem a câmara de comércio. Aí foi um avanço. Eu penso que dentro de um projeto mais estruturado, e aqui apelo ao papel importante de um embaixador português, de fazer com que se sentem à volta da mesa, mas com objetivos. E é por isso que aqui não pode ser apenas a representação diplomática, tem de ser um projeto que também venha da parte portuguesa. Se é possível? Sim, é possível. É uma questão de visão. É uma questão de pessoas e de as pessoas conseguirem tirar a capa da sua própria realidade temática e compreenderem que há uma necessidade de uma visão mais alargada. Compreendi agora que era difícil fazê-lo nos 20 primeiros anos de emigração, mas já estamos nos 50 anos dessa grande emigração. Agora já não faz sentido não fazer. Mas será sempre uma questão de pessoas, entre quem quer e quem não quer. Enquanto houver essas resistências passivas ou ativas, nós continuamos a ter apenas alguns fatores a funcionarem. Vejamos que uma câmara comércio pode funcionar e uma associação de jovens pode funcionar. Mas como é que são as outras? Onde é que estão as outras? Como é que as outras têm realmente uma capacidade de marcar o terreno? Com esses desequilíbrios, para mim não há uma comunidade portuguesa a funcionar. É importante ter um secretário de estado das comunidades portuguesas, para termos essa ligação direta com as comunidades, mas nós, na verdade, segunda e terceira geração, precisamos mais é de uma missão interministerial, porque os nossos assuntos já não são emigração. São assuntos fiscais, são assuntos de ensino da língua, são assuntos de investimento … era mais útil termos uma estrutura que sistematicamente agilizasse realidade.
O que podemos esperar do Hermano Sanches Ruivo para o futuro? Que projetos e objetivos gostava de conseguir alcançar?
Francamente, com estes 30 anos de experiência, eu estaria fundamentalmente interessado em participar em estruturas portuguesas que pensam em internacionalização, que pensam a noção de lobbying. Lobbying não apenas económico. É preciso ter esse cuidado. A nossa cultura é importantíssima. Nós temos realizadores, vejamos o teatro, a dança, vejamos toda uma série de realidades, inclusive ligadas à música, mas não só. As novas tecnologias, as bibliotecas e toda uma série de realidades. E eu gostaria de trabalhar essa noção de lobbying, mas ao mais alto nível. Isso tem de ser um objetivo de nação. E muitas vezes eu coloco essa pergunta. Eu sei que é maçador dizê-lo a si, mas será que Portugal tem essa ambição? Será que Portugal, essa aldeia linda à beira-mar, com essas capacidades que todos reconhecem, será que tem ambição para mexer um bocado com o status quo, com que já está instalada, para ir mais longe? A ligação com as descobertas já passou. É altura de nós, de facto, termos uma visão mais pragmática, muito mais ambiciosa, sobre a presença de Portugal no mundo, utilizando também a questão não da emigração, mas das comunidades portuguesas, na sua segunda e terceira geração, com todo o reconhecimento e todo o respeito pela primeira geração, pelos nossos pais, a quem devemos muito e a quem Portugal deve muito. Mas estamos quase na quarta geração, há que imaginar essa noção de lobbying.
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